sábado, 16 de abril de 2011

Réquiem a uma Cozinha de Pedra

Sou suspeita a escrever sobre esse poema, já que o declamei por muito tempo. Admiro muito os versos de Guilherme Collares e sua visão tão particular sobre a poesia.

Esse poema, porém é interessante especialmente por mostrar a importância que algumas coisas, às vezes antigas e esquecidas, abandonadas e deterioradas, continuam tendo para as pessoas que com elas conviveram. Não pela sua importância material e estética, mas pela sua importância sentimental. Por tudo o que se passou naquele lugar, às vezes, por algumas gerações, e que aos poucos, foi virando Cultura.

O vídeo no final é a minha interpretação, apresentada na Interregional do ENART, em Soledade, em 2010, muito bem acompanhada pelos amigos Leandro Ebert, no violão, e Pedro Lemos, no violino.


Réquiem a Uma Cozinha de Pedra
Autor: Guilherme Collares


Numa querência que tive,
de campo de sonho e vida...
Um antigo fortim de pedras
de uma cozinha campeira
me retornou pro meu eu,
adormecido em mim mesmo...

Me deserdo dos meus olhos
pelas tristezas que vejo
no pago que conheci...

...com saudades da criança
que mudou... mudei; mudastes...
... e por meus olhos, eu vi!

A cumeeira da cozinha
cansou de exercer seu fim...
...e por seus olhos, eu vi...
esta saudade daninha
que nasceu, na tardezinha,
quando as pedras - da cozinha,
retornaram pro seu meio.

O que um dia foi da terra,
para a terra há de voltar!
... neste eterno renovar
do tudo que em nós existe.
Não vão, as mágoas do triste,
a lei dos tempos mudar!

Protetora - no seu eu...
mescla de forte e de buena;
misteriosa, cheia, plena...
Com semblantes de passado.
Memoriais escriturados
em cicatrizes terrenas.

Foi quando me vi brotado
que tive do teu mais terno...
Mateava - de manhã cedo;
"tardecita"- sol de  inverno...
com a alma da cozinha
revivendo na fumaça
meus antigos ancestrais;
a ensinarem - lampeiros,
o seu mister - de campeiros
de sábios e de guerreiros,
aos que seguiram-se após...

No fogão - há muito só;
cansado da solidão
de não ter a companhia
dos seus velhos tauras-pais,
que matearam em teu seio...
restou - solito e tristonho,
o empredrado das brasas,
das muitas chamas de pátria,
de fogão e corações,
que aqueceram os teus dias...
"yerva amarga"e picumã...

... e foi graxa de costela,
foi tisnado de cambona,
muitas crias de cadela
que o teu calor "acunou".

Numa fresta centenária
que se abria na cumeeira
com frente de corruíras
ensinaram para os homens
os segredos de uma vida
de harmonia com seu meio.

Um banco velho marcado
- com marcas de muitos longes -
de estância, história e passado...
As velhas marcas que outrora
retoçavam nos setembros
pelos quartos das eguadas...
Que fizeram muitos rastros,
de léguas... léguas e léguas,
nas picanhas dos tambeiros...
pra sangrar nos matadouros,
na carniça das charqueadas.
... Essas marcas velhaqueavam
nos costados do banquito.

Foi o berço do meu sangue...
de bugre, de pêlo-duro,
de negro, de castelhano,
de mouro... do que sou hoje!
...um resumo ensimesmado
da mescla continentina,
que brotou na cisplatina
das sementes do passado.

Foi a marca de uma raça
que nasceu embrutecida,
e viveu na dura lida
das tropas e gadarias...
que dobrou as invernias
com poncho-pátria e "sombrero".
Foram estes o sinuelo
aos matreiros da cultura
que cultuam as memórias
e valores verdadeiros.

Eu vi...
... meus olhos viram...
coração negou-se a olhar!
... o fortim a retornar
ao seu meio original!;
a cozinha maternal
já não aquece os meus dias,
o tempo desmancha sonhos
num processo natural.

E o chão chamou para sempre
a cozinha - para si...
...e por meus olhos, eu vi...
coração nem enxergou!

Só a saudade me restou
neste réquiem à cozinha...
da querência... que era minha...
... no pago que conheci...


 

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