segunda-feira, 29 de julho de 2013

JOSÉ E O CASARÃO - Carlos Rangel

Boa Tarde, Amigos
Em um breve passeio na internet no horário de almoço, deparei-me com essa imagem, muito triste, de um casarão terminando de ser demolido. Não parece ser uma casa qualquer, daquelas de madeira que as pessoas justificam "não ter nenhuma característica arquitetônica importante" ou "não ter importância nenhuma" por ninguém importante ter morado lá. Trata-se de um casarão aparentemente colonial, antigo, uma pousada que certamente recebeu pessoas importantes.
Abrindo o link me deparei com um lindo texto, que nos comentários é atribuído a Carlos Rangel. 
Fiquei pensando... se é tão difícil manter uma construção assim, quais argumentos se utiliza para convencer as pessoas que até uma humilde casa de madeira pode ter valor histórico e cultural? Que até paióis e estrebarias em ruínas (mas muitas vezes ainda em uso) formam conjunto com as demais edificações e tem quase a mesma importância da casa principal, já que era ali a fonte de sustento da família...
O texto é de uma sensibilidade extrema, e espero que toque o coração até dos mais insensíveis. Boa leitura.
Cristiane Bertoco, Lua minguante, 29 de julho de 2013.

José e o Casarão 
Carlos Rangel
Demolição da Antiga Pousada Jager em Taquara/RS - Junho/2012
José era um operário destes que fazem casas.
Que destróem casas.
Erguem edifícios onde havia casas.
Neste dia José não estava fazendo nem construindo edifícios.
Junto com outros operários estava demolindo uma grande e antiga casa.
Neste dia trabalhou muito, derrubando paredes com sua marreta, quebrando tijolos, destruindo pinturas.
Quando o dia terminou, sentou cansado em um degrau de escada.
Seus amigos foram embora, mas ele ficou mais um pouco olhando o trabalho feito. Adiantado, mas ainda não terminado.
Foi então que ouviu uma voz.
Voz rouca, quase distante.
- José…
- Quem está me chamando? Quem está aí? – Perguntou José se levantando.
- Sou eu José – disse a voz.
- Quem? Se mostre, por favor… – Pediu José assustado.
- Já estou me mostrando, estou em toda parte – Disse a voz.
- Não entendo… Que brincadeira é essa? – Perguntou José preocupado.
- Não é nenhuma brincadeira, José. Sou eu, a casa que você destrói.- Disse a voz.
- A casa? – Espantou José.
- Sim, a casa.
- Mas casas não falam – Respondeu José.
- Casas falam e sentem José…
- Devo estar sonhando…
- Não José, você não esta sonhando. Te vi aqui sozinho e achei que podia conversar com você.
- O que quer de mim? – Perguntou o operário tremendo.
- Apenas conversar… Apenas falar… Apenas lamentar…
- Lamentar?
- É… Eu sofro sabia? Sofro por deixar esta terra que eu ví crescer.
- Não sabia que as casas sentiam… – Exclamou José.
- As casas sentem sim. E têm memória também. – Disse a voz.
- Memória?
- É, me lembro ainda do primeiro tijolo que fui, da casa que me tornei… O belo casal que abriguei… Marina nasceu no quarto lá em cima. Depois veio Manuel… Manuel cresceu e se casou. Veio morar em mim. Marina também se casou mas não ficou. Foi para longe… Vinha de vez em quando… Quando os pais morreram parou de vir…
Foi Manuel que me mandou pintar com os barrados coloridos de frutas. Sua mulher me trocou os vidros por estes que você ajudou a quebrar…
- Desculpa – Pediu José.
- É … Ao meu redor a cidade ia mudando…Crescendo, se povoando… Os carros puxados a cavalo foram substituídos pelos carros a motor… Manuel comprou um ford… Um dia a mulher do Manuel faleceu e ele ficou só com os filhos.
- Coitado… – Lamentou José.
Marcos, Maria e Fernanda brincavam muito descendo e subindo estas escadas… Rabiscavam-me com seus lápis, me derramavam tinta… Manuel ficava com raiva e me consertava. Eu não ligava… Até gostava…
Quietinha em meu lugar ouvia falar de guerras e rumores de guerras…Uma doença que matou muita gente… Gripe Espanhola…Manuel reformou o banheiro… Ficou lindo…
- O que aconteceu depois? – Perguntou José.
- Manuel ficou velho, os meninos cresceram, estudaram, casaram, mudaram… Quase não vinham mais… Eu e Manuel assistíamos as mudanças…As modas indo e vindo… O som do rádio, depois a televisão… Os prédios substituindo as casas amigas da vizinhança… Barulho, muito barulho… Aí Manuel morreu… Fiquei só de vez.
- Os meninos não vieram ficar com você? – Perguntou José com os olhos cheios de lágrimas.
- Ninguém me quis…Fiquei fechada um tempo…Os vidros sendo quebrados por meninos…Doía… A solidão doía mais…
De vez em quando um mendigo dormindo na varanda… O fogo de sua fogueira queimando as paredes… Depois…Venderam-me, me esqueceram e aqui estou sendo demolida por vocês…
- Mas que injustiça – Disse José.
- É a vida José… – Disse a casa com sua voz fraquinha.
- Mas toda esta história… Tudo será destruído com você… – Exclamou José.
- Infelizmente é assim… Mas estou aliviada, pelo menos uma pessoa sabe.
- Em tantos anos destruindo e construindo casas, nunca havia pensado que as casas pudessem ter vida.
- Elas têm. Vidas impregnadas das vidas dos que a fizeram e habitaram. Nas paredes, nos lustres, no ranger de cada porta, um pouco dos habitantes permanece. A alma de um tempo, de vários tempos… Seus amores, suas dores, seus modos de viver e ver o mundo… Somos vivas porque abrigamos vidas… Muito mais que isto, abrigamos memórias…
José ficou pensativo.
- É noite José, eu já não tenho mais luz para te iluminar. Vá
para sua casa e pense em tudo que te contei. Amanhã eu
sei, não estarei mais aqui.
José não disse nada. Pegou sua mochila e saiu da casa em ruínas.
Amanhã ele não voltaria.

segunda-feira, 19 de março de 2012

ARQUITETURA FUNCIONAL - Mário Quintana

Muito interessante a visão do poeta Mario Quintana sobre a arquitetura antiga e contemporânea. Fica a pergunta. Será que são as casas velhas que eram idealmente boas (embora não perfeitas ou muito funcionais) ou será que são as casas do nosso tempo que não estão cumprindo o papel de responder às necessidades e sonhos de nossos clientes. Será que essas "casas novas" não estão carentes de poesia apenas porque estamos esquecendo de colocá-las em nossos ambientes? Ou seria apenas saudosismo, gosto pessoal do autor?

ARQUITETURA FUNCIONAL
Mário Quintana 
Para Fernando Corona e Antonieta Barone 


Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas.
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas.
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma... tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje !
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não tem porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho ?
O sonho é sempre um hospede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas ?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa.
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras cousas...)
E as casa novas não tem ao menos aqueles longos,
intermináveis corredores
Que a lua vinha às vezes assombrar !

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Casa Arrumada

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia. Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Declaração sobre entrevista ao Jornal Integração Setembro 2011

Recentemente fui chamada pela equipe do Jornal Integração da Serra para dar uma entrevista e indicar fontes de pesquisa para uma reportagem sobre a Semana Farroupilha. Na ocasião, sem um gravador e em uma conversa informal discutimos assuntos sobre tradicionalismo, CTGs e Cultura Gaúcha.

Infelizmente, na edição ou talvez por pouco conhecimento sobre o assunto, a entrevista foi tirada de contexto e, já que não havia sido gravada, foram publicadas em meu nome palavras que eu não disse (ao menos no sentido em que estão escritas), modificando totalmente o sentido do que foi falado.

Não quero me indispor de forma alguma com a equipe do jornal, que inclusive são meus amigos, e tenho certeza que o que aconteceu não foi proposital. Mas me vejo na obrigação, com os meus clientes, com os tradicionalistas, artistas da cultura gaúcha e com as pessoas que me acompanham e ensinam desde o prendado regional, a publicar uma declaração.

A dúvida da equipe do Jornal era o fato de, na opinião deles, a Cultura Gaúcha e os seus eventos não serem valorizados. Então declarei que, em minha opinião, a Cultura Gaúcha está sendo valorizada, sim, em nossa cidade e região, e que o público dos eventos tradicionalistas e nativistas está crescendo.

Foi me perguntado, então, QUAL A DIFERENÇA ENTRE TRADICIONALISMO E NATIVISMO? E foi esse o contexto da declaração polêmica publicada em meu nome.
No caso, O TRADICIONALISMO NÃO SE ATÉM APENAS A CANTAR E DANÇAR. É necessário conhecer toda a História e Geografia do Rio Grande do Sul e do Brasil, Tradição, Cultura e Folclore do nosso Estado. O Movimento Tradicionalista Gaúcho é um movimento grande e bem organizado, que tem a sua legislação, suas teses, seus princípios.

O que estava em discussão era a diferença entre Nativismo e Tradicionalismo. O nativismo é um movimento poético e musical, que envolve o Gaúcho Rio-grandense e o Gaucho Castelhano. O tradicionalismo tem por objetivo cultuar e difundir a tradição e a cultura do Rio Grande do Sul. Nesse sentido é que foi dito que no tradicionalismo se canta e dança “músicas feitas”, porque A MAIORIA DOS FESTIVAIS SÃO PROMOVIDOS NO MEIO NATIVISTA E É LÁ QUE SE ACONTECE A CRIAÇÃO. Pela qualidade desses festivais é também, muito difícil passar algum trabalho e é necessário muito conhecimento e talento para participar, o que muitos colegas de nossa cidade, como o Pedro Jr., o Vinícius Nardi, o Luciano Salerno, a Caren Burtet, entre outros, tem alcançado, como autores e intérpretes, e isso pode ser mais valorizado.

O Movimento Tradicionalista, nesse sentido, é uma escola, pois é nos Rodeios, concursos de Prendas e Peões, ENART e CTGs que se aprende a cantar, declamar, dançar, escrever, compor...
Além disso, a maioria dos tradicionalistas ouve música nativista, mas nem todo nativista é tradicionalista, ou fala de tradição. Músicas como Vento Negro e Vira Virou são nativistas e não falam de tradição. MAS SÃO DA CULTURA GAÚCHA.

Para finalizar, se não houvesse CULTURA ARTÍSTICA, eu não seria declamadora, porque não existiria poesia gaúcha. Jamais falei isso. O Gaúcho é um ser artístico por natureza. Séculos de Guerra, invernos frios e poucas festas, tornaram o gaúcho um ser melancólico, mas também expansivo e hospitaleiro. Os participantes do Rodeio Regional acontecido no último final de semana e os artistas que estão apresentando Shows na Semana Farroupilha são prova disso.

E foi por amor a essa cultura que decidi ser Arquiteta e Urbanista de Patrimônio Histórico e Cultural. Para poder ajudar a preservar o meio em que a nossa cultura acontece.
Peço desculpas à equipe do Jornal se fui dura, mas precisava deixar claras as minhas opiniões, para que não fossem deturpadas as minhas idéias e tudo aquilo o qual defendo.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Das Velhas Casas

Rodrigo Bauer / Chico Saratt

Nas casas velhas que o progresso ameaça
Restam os vultos de meus dias ternos
Meu rosto jovem dorme na vidraça
Nas noites vastas desses meus invernos

No poço fundo que guardei as sedes
Vi tardes mornas a pedir janelas
Fiquei aos poucos dentre as tais paredes
Por minha sombra que timbrou-se nelas

A solidão é que entristece as casas
Vai-se a mobília procurando o preço
Os homens partem como quem tem asas
E mesmo as cartas mudam de endereços

As altas portas a soprar os ventos
Nessas lembranças que a saudade abrasa
Fazem pensar em tantos sentimentos
Que são humanas essas velhas casas

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Nossa Senhora dos Navegantes em seu dia de festa no passo de São Borja

"Nossa Senhora dos Navegantes em seu dia de festa no passo de São Borja"
Autor: Apparicio Silva Rillo
Declamador: Vinícius Nardi
Amadrinhador: Marcos Grando (viola)


Faz algum tempo que prometo colocar esse vídeo no blog, com a apresentação do Vini na final do ENART, quando ele foi vencedor na categoria declamador adulto. Antes de sua apresentação, ele fala em PAISAGEM CULTURAL, conceito sobre o qual vou escrever logo que puder, mas que é muito bem retratada nesse poema do Apparicio, e que foi muito bem representada na interpretação do Vini e do Marcos.
Vendo essa apresentação fiquei pensando "Que bom que o Apparicio registrou tão bem essa paisagem de São Borja", mas ao mesmo tempo, penso "que pena que aquilo que se perdeu no tempo é tão difícil de ser recuperado."

Já elogiei esses artistas diversas vezes, mas quero deixar o registro que essa interpretação deles enriquece o poema por demonstrar coisas que quem não viveu em São Borja naquela época tem dificuldade de imaginar, e que, através de muita pesquisa e interpretação excelente, o Vinícius conseguiu nos passar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Poesia no fast-food

A poesia e a música nativista estão finalmente se projetando do campo, para dar sensibilidade à selva de concreto. Estive fazendo um lanche semana passada em uma famosa lanchonete em Bento Gonçalves, e tive a grata surpresa de, ao começar a comer, ouvir uma música do saudoso Noel Guarani, bastante singela e agradável. Ao me informar, soube que estavam ouvindo uma rádio da cidade, que nesse horário apresenta um programa de música nativista e tradicionalista.

Por sinal, o local nada tinha a ver com nossas terras do Sul, já que é uma franquia multinacional norte-americana. Permito-me divulgar, pois sua localização em uma importante via turística, em frente ao hotel mais importante da cidade, próximo à Casa das Artes, valoriza ainda mais a importância dessa atitude por parte dos donos e funcionários, que provavelmente não tiveram a intenção de divulgar propositalmente esse tipo específico de música.

Mas só o fato de não estarem tocando músicas comerciais norte-americanas, como é o caso da maioria desses empreendimentos, valorizando as rádios da nossa Terra, é louvável. Além disso, o espaço oferecido por essa lanchonete nada lembra as fast-foods tradicionais, antes um caffè italiano, incentivando a alimentação saudável.

A respeito da Rádio que estavam ouvindo, é uma das muitas emissoras dessa região que apresentam programas de música gaúcha no final da tarde. A inserção da música nativista, mais calma e melodiosa, permitiu que essa expressão musical conquistasse lugar no comércio e escritórios da região. Percebe-se já a algum tempo que esses empreendimentos já não mudam de frequência quando iniciam esses programas, pois já apreciam e se habituaram a ouvir esse tipo de música, ao menos nesse horário.

Bom para os artistas, bom para cultura riograndense, bom para quem gosta de qualidade musical. Muito bom para as próximas gerações, que se desenvolverão valorizando também as culturas do seu lugar.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A Casa

Autor: Ebert Emanuel
Do Livro: Esboços para Futuros Poemas

A casa
- como um ventre
nos acolhe
morada íntima
a casa é muito mais
que paredes e tijolos

a casa somos nós
e os outros que alojamos

a casa somos nós
nós a construímos
com nossos
devaneios
nós nos construímos. 



Casas no Roteiro "Caminhos de Pedra", em Bento Gonçalves/ RS

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Como Matar Um Planeta - Yanto Laitano

Tive a honra de assistir na noite de Páscoa, no Ferrovia Cult, em Bento Gonçalves, o show do artista que veio a ganhar o prêmio Açorianos como melhor instrumentista. Ele, de fato, havia sido indicado em 6 categorias, e posso garantir que, pelo que vi aquela noite, ele mereceu as indicações e a premiação.
O álbum, que ele disponibiliza em seu próprio site, é merecedor pela qualidade de suas letras e melodias, mas também pela visão e pela ousadia.

Dentre as músicas (e poesias) desse álbum, destaco a música "Como Matar Um Planeta", inspirada por José Lutzemberger, sendo que o autor fez as trilhas dos filmes "O Legado Lutzenberger."  Documentário de Frank Coe e Otto Guerra, 2008 e Lutzenberger: For Ever Gaia. Documentário de Frank Coe e Otto Guerra, 2007.

Para quem pensa que isso não tem a ver com  Arquitetura, lembro da importância do meio ambiente para nós, humanos. Antigamente falar em "meio ambiente" dizia respeito apenas à natureza, à fauna e à flora. Hoje, temos plena consciência que também fazemos parte do ambiente, e que o nosso "meio ambiente", nosso habitat são as cidades, cada vez mais poluídas e insalubres.

Yanto consegue lidar com esse tema de uma forma lúdica e crítica ao mesmo tempo, atentando para o perigo de não sermos "sustentáveis", como diz a palavra da moda, e além disso, de conviver em harmonia com o nosso meio ambiente. Vi em um documentário sobre ecodesign uma vez, que o autor dizia que se a nossa vida fosse apenas sustentável, não a consideraríamos boa. Então por que ser apenas sustentável, dizia o autor.

A música subscrita provoca uma boa reflexão sobre o que estamos fazendo com o nosso planeta, e indica a possibilidade de melhorar a nossa situação.
O site do autor, onde é possível conhecer seu trabalho e suas músicas é http://www.yantolaitano.com.br/


Como Matar Um Planeta
Autor: Yanto Laitano - para José Lutzemberger

joga o cigarro no chão e reclama da poluição
solta a fumaça no ar e foda-se quem respirar
olha ai esse cara, igual a ele tem mais um zilhão

instala uma usina nuclear num paraíso a beira-mar
corta a floresta inteira e vende pros gringo a madeira
olha aí o nosso mundo, igual a ele não temos nenhum

Mas ainda tem uma minoria que pretende conviver em
harmonia com o mundo
e repensar nossa postura de criaturas que só sabem
sugar a natureza até se acabar

Lá-lá lá-lá-lá lá-lá-lá, joga no rio a sujeira
Lá-lá lá-lá-lá lá-lá-lá, e diz que poupar água é besteira
Olha não vai ter graça se a vida na terra,
se a vida já era, se a vida na terra acabar

sábado, 16 de abril de 2011

Réquiem a uma Cozinha de Pedra

Sou suspeita a escrever sobre esse poema, já que o declamei por muito tempo. Admiro muito os versos de Guilherme Collares e sua visão tão particular sobre a poesia.

Esse poema, porém é interessante especialmente por mostrar a importância que algumas coisas, às vezes antigas e esquecidas, abandonadas e deterioradas, continuam tendo para as pessoas que com elas conviveram. Não pela sua importância material e estética, mas pela sua importância sentimental. Por tudo o que se passou naquele lugar, às vezes, por algumas gerações, e que aos poucos, foi virando Cultura.

O vídeo no final é a minha interpretação, apresentada na Interregional do ENART, em Soledade, em 2010, muito bem acompanhada pelos amigos Leandro Ebert, no violão, e Pedro Lemos, no violino.


Réquiem a Uma Cozinha de Pedra
Autor: Guilherme Collares


Numa querência que tive,
de campo de sonho e vida...
Um antigo fortim de pedras
de uma cozinha campeira
me retornou pro meu eu,
adormecido em mim mesmo...

Me deserdo dos meus olhos
pelas tristezas que vejo
no pago que conheci...

...com saudades da criança
que mudou... mudei; mudastes...
... e por meus olhos, eu vi!

A cumeeira da cozinha
cansou de exercer seu fim...
...e por seus olhos, eu vi...
esta saudade daninha
que nasceu, na tardezinha,
quando as pedras - da cozinha,
retornaram pro seu meio.

O que um dia foi da terra,
para a terra há de voltar!
... neste eterno renovar
do tudo que em nós existe.
Não vão, as mágoas do triste,
a lei dos tempos mudar!

Protetora - no seu eu...
mescla de forte e de buena;
misteriosa, cheia, plena...
Com semblantes de passado.
Memoriais escriturados
em cicatrizes terrenas.

Foi quando me vi brotado
que tive do teu mais terno...
Mateava - de manhã cedo;
"tardecita"- sol de  inverno...
com a alma da cozinha
revivendo na fumaça
meus antigos ancestrais;
a ensinarem - lampeiros,
o seu mister - de campeiros
de sábios e de guerreiros,
aos que seguiram-se após...

No fogão - há muito só;
cansado da solidão
de não ter a companhia
dos seus velhos tauras-pais,
que matearam em teu seio...
restou - solito e tristonho,
o empredrado das brasas,
das muitas chamas de pátria,
de fogão e corações,
que aqueceram os teus dias...
"yerva amarga"e picumã...

... e foi graxa de costela,
foi tisnado de cambona,
muitas crias de cadela
que o teu calor "acunou".

Numa fresta centenária
que se abria na cumeeira
com frente de corruíras
ensinaram para os homens
os segredos de uma vida
de harmonia com seu meio.

Um banco velho marcado
- com marcas de muitos longes -
de estância, história e passado...
As velhas marcas que outrora
retoçavam nos setembros
pelos quartos das eguadas...
Que fizeram muitos rastros,
de léguas... léguas e léguas,
nas picanhas dos tambeiros...
pra sangrar nos matadouros,
na carniça das charqueadas.
... Essas marcas velhaqueavam
nos costados do banquito.

Foi o berço do meu sangue...
de bugre, de pêlo-duro,
de negro, de castelhano,
de mouro... do que sou hoje!
...um resumo ensimesmado
da mescla continentina,
que brotou na cisplatina
das sementes do passado.

Foi a marca de uma raça
que nasceu embrutecida,
e viveu na dura lida
das tropas e gadarias...
que dobrou as invernias
com poncho-pátria e "sombrero".
Foram estes o sinuelo
aos matreiros da cultura
que cultuam as memórias
e valores verdadeiros.

Eu vi...
... meus olhos viram...
coração negou-se a olhar!
... o fortim a retornar
ao seu meio original!;
a cozinha maternal
já não aquece os meus dias,
o tempo desmancha sonhos
num processo natural.

E o chão chamou para sempre
a cozinha - para si...
...e por meus olhos, eu vi...
coração nem enxergou!

Só a saudade me restou
neste réquiem à cozinha...
da querência... que era minha...
... no pago que conheci...